Observações sobre Ritmos e o “Louvor” na Liturgia Ou Desabafo de Um
Presbítero, não-tão-Velho-Assim, à Beira da Surdez
Alguns perguntam
sobre musicalidade na igreja: “São todos os ritmos apropriados ao louvor, na
igreja?”.
Para
tratar dessa questão, poderíamos entrar no chamado “Princípio Regulador”, que
descreve a orientação do culto reformado, no qual somente as coisas diretamente
comandadas por Deus devem fazer parte da liturgia. Ocorre que, tomado
literalmente, não existe uma única igreja nossa que se enquadre na
interpretação mais rígida do “Princípio”, mesmo aquelas pastoreadas ou frequentadas
por seus mais ávidos proponentes. Até nas mais conservadoras encontramos o coro
da Igreja, devidamente fardado sob o nosso escaldante calor tropical, entoando
belos hinos ao Senhor – alguém pode me indicar onde isso está prescrito no Novo
Testamento? Mesmo em nossas igrejas co-irmãs da Escócia – supostas praticantes
coerentes do “princípio regulador”; aquelas que defendem que o Antigo
Testamento não tem nada a nos dizer sobre a liturgia do Novo Testamento, que
são contra a utilização de instrumentos musicais e onde somente os Salmos são
entoados, não existe coerência. Os Salmos são cantados, porém com músicas e
métricas geradas por mentes de cristãos que viveram milênios após a escrita dos
textos bíblicos e as letras são adaptações, para se enquadrar na métrica. Isso
sem falar que a tentativa é de uma liturgia neo-testamentária, que, na parte da
música é totalmente dependente do Antigo Testamento – pois lá é que encontramos
os Salmos. Nessas igrejas, todas as palavras dos Salmos devem ser cantadas com
fervor, mas se encontramos aqueles trechos que falam dos instrumentos musicais temos
que ignorar tanto o texto como a eles, e considerando-os parte de uma outra era
– dá para perceber alguma incoerência nisso? Recorrer, portanto a um exame
aprofundado, complexo e possivelmente infrutífero, na definição e
aplicabilidade do “princípio regulador”, não responderia a questão, traria
outras à tona e é uma reflexão necessária que tem que ser levada a cabo em
outra arena. Preferi, portanto, responder o assunto dentro do direcionamento
geral que temos nas escrituras e do senso comum que Deus nos concedeu, em vez
de invocar nossas raízes históricas.
Quando
procuramos na Palavra de Deus não encontramos restrição ou classificação
intrínseca de ritmos, como existindo os que são “maus”, e os que são “bons”.
Sei que inúmeros livros têm sido escrito, no campo evangélico, sobre as raízes
malévolas de certos ritmos e é certo que os ritmos estimulam as pessoas a
diferentes estados de espírito, mas permito-me desconfiar das conclusões
supostamente científicas e das conexões traçadas por tais trabalhos. Na maioria
das vezes temos apenas uma coletânea de opiniões pessoais e ilações infundadas.
Às vezes, somos levados à dedução de que o único cântico admissível na igreja
seria, preferencialmente, o gregoriano, de alguns séculos atrás, sem muita
variação musical ou harmonia.
A
realidade é que a Bíblia parece aceitar a utilização de ritmos na adoração. Com
certeza existiam os Salmos “mais agitados” e os “mais lentos’.
Independentemente de tratarmos de “liturgia do VT” ou “do NT”; do templo, da
sinagoga ou da igreja primitiva, Deus permanece o mesmo e o seu
agrado/desagrado não deve ter sido modificado na Nova Aliança. Assim, qualquer
investigação sem idéias preconcebidas, verificará que instrumentos diversos e
variados foram utilizados pelos fiéis e aceitos por Deus, na adoração de sua
pessoa.
Como já
frisamos, entretanto, independentemente da letra, existe uma empatia entre
melodia e ritmo, e o estado de espírito provocado nos cantantes/adoradores. Ou
seja, um ritmo agitado em uma hora de contrição é uma contradição
de bom senso (algo há muito perdido em nossas igrejas). Não deveríamos precisar
de uma profunda exposição teológica para substanciar isso. Um ritmo lento, ou
em tom (clave) menor, numa ocasião de festa, de acampamento, por ocasião de uma
caminhada, é também uma contradição de bom senso. Quando esse julgamento é
quebrado, na igreja, faz-se também violência aos que estão sinceramente
procurando adorar. O Salmo 33.3 nos orienta a cantar “com arte” (qualidade,
propriedade, musicalidade, harmonia) e “com júbilo” (entusiasmo).
Isso nos indica que intensa qualidade musical deve ser objetivada no louvor a
Deus e, por outro lado, que é um erro equacionarmos espiritualidade, com um
cântico “morto” destituído de entusiasmo, sem o envolvimento de todo o nosso
ser.
A
maioria dos Salmos possui títulos que grande parte dos eruditos bíblicos
considera como sendo parte do texto original. Essa conclusão ocorre não somente
porque se encontram nos manuscritos mais antigos, como também porque muitos
estão incorporados ou intrinsecamente ligados ao texto, mas também porque
outros livros bíblicos (Exs.: 2 Sm 22 e Habacuque 3) trazem tanto salmos como
os seus títulos em seus textos inspirados. No livro dos Salmos, os títulos,
muitas vezes, classificam aqueles cânticos quanto às diferentes ocasiões nas
quais deveriam ser entoados. A indicação parece ser a de que existiam melodias
e ritmos próprios para cada situação, por exemplo: “cântico de romagem
[marcha]” (Salmo 120); “salmo didático, para cítara” (Salmo 53); “para
instrumento de corda” (Salmo 4); “para flautas” (Salmo 5). Cada
dirigente de música ou líder eclesiástico, em nossas igrejas, deveria levar
essa questão em consideração utilizando a massa cinzenta que Deus lhes deu para
discernir os ritmos apropriados e impedir aberrações na liturgia.
No que
diz respeito à letra, as Escrituras dão considerável ênfase à linguagem dos
cânticos. Em Efésios 5:19, a força da prescrição está na comunicação
que os cânticos devem apresentar: “falando entre vós com salmos,
entoando e louvando de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais”.
Ou seja, é totalmente destituído de valor o cântico no qual não existe
concentração na letra, ou quando esta não reflete os ensinamentos da Palavra,
ou quando é entoado mecanicamente, só pelo ritmo ou melodia. A passagem
paralela, em Colossenses 3:16, também enfatiza o aspecto de comunicação e
exortação através dos cânticos, sempre fundamentados na Palavra de Deus
(ou, como traz o texto, na Palavra de Cristo): “Habite, ricamente, em
vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a
sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com
gratidão, em vosso coração”. Não resta dúvida, pois, que as letras,
ou as palavras, devem refletir os ensinamentos bíblicos e comunicar coisas
inteligíveis aos participantes. Hinos, corinhos, cânticos que não comunicam ou
que têm palavras antigas, anacrônicas, obsoletas, obscuras ou hebraismos /
helenismos desconhecidos dos que cantam e/ou ouvem -- fogem à característica bíblica
da adoração, na qual a comunicação é parte importantíssima. Vale a pena,
portanto, perguntarmos, será que todos sabem, mesmo, o que é El-Shadai?
E o que deveríamos pensar do “...lá, lá, lá, lá...” tão frequente nos
cânticos contemporâneos? Estão comunicando o que?
O
grande problema contemporâneo que encontramos, acredito, reside em dois pontos
cruciais: (1) Um anacronismo enrustido de uns – esses acham que algo para ser
bom, cristão e próprio tem que ser velho e maçante; (2) Uma ingenuidade
gratuita de outros, que, se deixada ao bel-prazer, vira arrogância e descaso
pelo bem estar espiritual dos demais irmãos. Esses demonstram desconsideração
para com a sanidade estética, mental e auditiva dos fiéis. Esses ingênuos
arrogantes, aceitam QUALQUER RÍTMO, desde que “cristianizado” ou “biblicizado”
– como sendo legítimo e apropriado a qualquer hora. O mais
aberrante é a mistura indiscriminada de ritmos, um atrás do outro, sem uma
direção ou conceito maior de que o objetivo global é levar os fiéis aos
diversos estágios de adoração com transição suave e racional, entre um momento
e o seguinte. É nesse sentido que o momento de “louvor” torna-se, para muitos,
uma verdadeira “hora da tortura”. É verdade que muitos participam ativamente,
mas são inconsequentemente liderados por dirigentes que não colocaram o mínimo
esforço na seleção e verificação do que seria cantado, e nem se preocuparam na
adequação dos cânticos com o momento, ou local. Isso sem falar na existência de
verdadeiras “trash gospel songs”, que não passariam no mais brando teste
de qualidade musical, sob qualquer critério, mesmo o secular, não evangélico.
Em
outras palavras, a tônica atual é de espontaneidade, como se espontaneidade
fosse sinônimo de “espiritualidade”. Nem a rigidez estéril e cadavérica é
“espiritual” nem a aleatoriedade desregrada. A ênfase bíblica nos levará mais
para uma liturgia planejada e estruturada de adoração a Deus, do que um
desenvolvimento aberto, definido “na hora”. Mas, nos dias de hoje, o momento de
louvor é levado como se fosse uma hora independente de “vale tudo” divorciado
dos demais aspectos do culto. Reconhecemos que, às vezes, pastores e líderes
criteriosos se preocupam com as palavras dos cânticos. Isso é bom e necessário,
mas não é o suficiente. Quem está fazendo a seleção e a adequação dos ritmos
(não me refiro a banir marcação rítmica, pura e simplesmente, como já
qualifiquei acima)? Quem está preocupado com a qualidade musical? Quem está
selecionando os cantores (normalmente, canta quem quer ou se auto-impõe, quer
tenha voz, quer não)? Quem está orientando os líderes da “hora do louvor” para
que sejam líderes de cânticos (se têm competência para tal) e não fontes de
sermões, puxões de orelha em irmãos de cabeça branca, ou passíveis de arroubos
“espirituais” que, em muitas ocasiões, contradizem todos os ditames
doutrinários da denominação que os abriga? Quem tem a mão no botão de
controle do volume? É necessário que toda a congregação tenha de ficar
refém e à mercê da sub-sensibilidade auditiva de alguns?
Acredito
que podemos ser consideravelmente abrangentes na nossa aceitação de ritmos e
melodias. Creio que podemos louvar a Deus de muitas maneiras e formas,
expressando toda a variedade recebida dele, em nossa formação cultural e
nacional. Mas louvor é coisa séria e essas questões acima não podem
simplesmente ser ignoradas. Muitas igrejas não deixariam um pastor qualquer
subir no seu púlpito e pregar um sermão aos fiéis. Exigem preparo, referência,
anos de seminário, aprovação por um presbitério, tutores, orientadores, testes,
etc. Mas escancaram as portas para o doutrinamento e a palavra de autoridade
advinda de pessoas que podem até estar cheias de sinceridade, mas igualmente
repletas de inexperiência e falta de preparo para orientarem doutrinariamente o
povo de Deus.
Uma
outra questão, que tem que ser aferida, é a utilização de músicas conhecidas
com letras evangélicas. Sabemos que isso ocorre nos hinos, de uma forma geral.
Por exemplo, nosso antigo hino: “Da linda pátria estou, bem longe...” é
uma canção folclórica Norte Americana, bem como o Hino No. 113: “Achei um
bom amigo”. Assim, muitos outros hinos nossos procedem do folclore de
outras nações; a música Italiana “Sole Mio” já serviu para várias
versões de hinos. Entretanto, quando a música utilizada é contemporânea demais,
é impossível divorciar a letra original do que está sendo
cantado. Por exemplo, já cantei várias vezes, em diversas igrejas, a letra de “glória,
glória, aleluia...” com a música de “Asa branca”. “Casa” direitinho
– a métrica é idêntica. Só que toda vez que canto só me lembro de “Asa Branca”
e de Luiz Gonzaga. Dita o bom senso que essa situação não conduz à plena
adoração. Só essa constatação bastaria para mostrar que não é sábio trasladar
músicas contemporâneas, de outras canções, para cânticos eclesiásticos. Mas
existe ainda uma falta de gosto total, de propriedade, de sabedoria e de
avaliação do ridículo com transmutações na qual a associação é com ritmos e
músicas que têm uma letra ou mensagem, às vezes, até imoral, sendo totalmente
impossível o cântico sem a lembrança do original, corrompendo, em
vez de edificar. Tal é o caso do “Segura o Tcham” que recebeu letra
“evangélica”, na Bahia, como “Segura o Cão”. Parece brincadeira mas é
verdade, ainda que tenha sido em uma “Igreja Universal”. Da forma como se
encaminham as coisas, qualquer hora dessas essa moda chega no nosso meio.
Realmente,
a questão de ritmos não é uma questão na qual a Bíblia legisla claramente. Cada
um de nós, portanto, tem que formar a sua própria opinião, sempre procurando os
valores maiores expressos na Palavra de Deus, em nossos relacionamentos
pessoais, sem nunca esquecer a primazia da verdade clara sobre nossas
conclusões pessoais. Por último, existe um outro aspecto de nossa liturgia que
merece ser levantado. Alguém, em algum lugar, decidiu (e não extraiu da
Palavra) que os cânticos não podem estar mesclados com os diversos passos da
liturgia, mas devem ser cantados de uma só vez, na chamada “hora de louvor”.
Mais sério ainda, alguém achou que só se pode louvar a Deus em cânticos se
estivermos em pé. Apesar de já ter dobrado o cabo da boa
esperança, não estou tão velho assim, mas confesso que é difícil e me canso de
ficar em pé 20, 30, às vezes 45 minutos seguidos, entre tentativas de
concentração de Louvar a Deus afastando os pensamentos pouco santos contra o
inventor que me obrigou a tal tortura. Hinos podem ser cantados sentados; mas
“cânticos espirituais”, só podem ser entoados de pé. Alguém sabe quem legislou
isso? Mereceria termos uma palavrinha com ele...
Autor: Presb. F. Solano
Portela Neto
Presbítero na Igreja Presbiteriana de Santo Amaro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário