Onde pode ser encontrada hoje a
igreja verdadeira e quais os seus aspectos essenciais? Em primeiro lugar
devemos distinguir os vários significados da palavra igreja:
1. Todo o
povo de Deus em todos os séculos, o conjunto total dos eleitos. Os Reformadores
falaram disto como sendo a igreja invisível.
2. A
comunidade local dos cristãos, reunidos visivelmente para adoração e
ministério; este significado abrange a vasta maioria das referências à igreja
(ekklesia) do Novo Testamento.
3. Todo o
povo de Deus no mundo, em determinada época, talvez melhor definida como a
igreja universal. Esse sentido ocorre apenas ocasionalmente no Novo Testamento
(1 Co 10.32; Gl 1.13).
4. "A
igreja dentro da igreja". Notamos antes a distinção feita entre a edah
(toda a congregação visível) e os gahal (aqueles dentro dela que respondem ao
chamado de Deus). Jesus ensinou que o reino corresponde a este padrão: o joio
está misturado com o trigo (Mt 13.24-30; 36-43). Dentro do grupo identificado com
Cristo acha-se o povo de Deus, a verdadeira igreja. Não existe, então, uma
igreja pura; em meio a cada igreja pode haver pessoas que não professaram a sua
fé e outras cuja profissão será desmascarada no último dia (Mt 7.21-23).
Admitindo-se
assim que uma igreja pura ou perfeita não é possível deste lado da glória, onde
podemos descobrir o verdadeiro povo de Deus visivelmente reunido?
Tradicionalmente, são reconhecidos quatro sinais da igreja autêntica.
UNA
A
unidade da igreja procede de seu fundamento do único Deus (Ef 4.1-6). Todos os
que pertencem verdadeiramente à igreja são um só povo e, portanto, a igreja
verdadeira será distinguida por sua unidade.
Esta
unidade, porém, não implica necessariamente uniformidade total. Na igreja do
Novo Testamento havia uma variedade de ministérios (1 Co 12.4-6) e de opiniões
sobre assuntos de importância secundária (Rm 14:1-15:13). Embora houvesse
uniformidade nas convicções teológicas básicas (1 Co 15.11, BLH; Jd 3), a fé
comum recebia ênfases diversas, segundo as diferentes necessidades percebidas
pelos apóstolos (Rm 3.20; cf. Tg 2.24; Fp 2.5-7; cf. Cl 2.9s).
Havia
também uma variedade de formas de adoração. O tipo de culto em Corinto (1 Co
14.26ss) não era comum nas igrejas palestinas, onde a adoração se baseava no modelo
da sinagoga judaica e tinha um padrão mais formal, centrado na exposição da
palavra escrita. Este modelo tirado da sinagoga justifica o fato de as igrejas
do primeiro século serem consideradas um ramo do judaísmo. Tiago 2.2 usa até
mesmo a palavra sinagoga para a reunião dos cristãos. Existem também elementos
discerníveis de mais de uma forma de governo da igreja.
A
verdadeira unidade no Espírito Santo de todo o povo regenerado é um fato
independente da desunião denominacional exterior. O chamado para a unidade no
Novo Testamento é, portanto, uma ordem para manter a unicidade fundamental da
vida que o Espírito concedeu através da regeneração (Ef 4.3). Os Reformadores
salientaram este ponto, distinguindo entre a igreja invisível (todos os eleitos
que são verdadeiramente um em Cristo) e a igreja visível (um grupo misto de
regenerados e não-regenerados). A unidade da igreja invisível é um fato
consumado, concedido com a salvação.
Roma
tem usado este sinal de maneira polêmica, a fim de proclamar sua unidade,
comparando-a à fragmentação do protestantismo, como uma evidência de ser a
verdadeira igreja. Isto, no entanto, ignora três pontos: (i) A própria Roma
separou-se da igreja ortodoxa em 1054, e jamais tinha sido considerada
universalmente como a única igreja verdadeira em séculos anteriores; por
exemplo, a igreja celta floresceu na Inglaterra, e Patrício fundou a igreja
inglesa muito antes de os missionários romanos terem chegado a Inglaterra. (ii)
Os sinais devem manter-se juntos. A sucessão histórica e a unidade exterior não
têm validade quando não associadas à lealdade e ao evangelho apostólico. (iii)
Embora o protestantismo tenha-se mostrado às vezes necessariamente
desagregador, pode ser argumentado que, através de seu desvio da doutrina
bíblica, é a própria Roma que tem sido a maior causa de cismas no correr dos
séculos.
As
Escrituras encorajam a mais plena expressão de unidade possível entre o povo de
Deus, mas elas também tornam claro que a divisão acha-se perfeitamente de
acordo com a vontade divina quando a essência do Cristianismo Apostólico
estiver em risco. Esta foi a razão da discórdia entre Paulo e os judaizantes
(Gl 1.6-12), e entre Jesus e os fariseus (Mc 7.1-13). É significativo notar que
quando Judas pretendeu escrever sobre a salvação que temos em comum, ele achou
necessário insistir com os leitores para "batalhar diligentemente pela fé
que uma vez foi entregue aos santos" (Judas 3). Para o Novo Testamento, a
unidade está baseada em um compromisso consciente com as verdades reveladas do
Cristianismo Apostólico.
O Novo
Testamento dirigiu seus ensinos sobre a unidade a grupos específicos, com
implicações imediatas para seus relacionamentos visíveis (Ef 2.15; 4.4; Cl
3.15). Jesus orou pela unidade, que ajudaria o mundo a crer (João 17.21); embora
o paralelo entre esta unidade e a dEle com o Pai (17.11,22) confirme o caráter
essencialmente espiritual da unidade bíblica, esta certamente inclui
identificação visível de vida e propósito, pois Jesus em toda a sua missão
expressou uma união visível e demonstrável com o Pai. Em outras palavras, é
preciso buscar uma unidade visível mais plena do que aquela que está sendo
experimentada pelos que são fiéis ao evangelho apostólico.
Este
fato tem especial importância quando dois ou mais grupos que têm uma fé bíblica
estiverem operando na mesma área, como, por exemplo, em um campus
universitário. O desafio mais profundo deste ensinamento, porém, situa-se ao
nível dos relacionamentos na igreja local. Nesse ambiente, a unidade da vida em
Cristo deve expressar-se através do cuidado e compromisso genuínos e tangíveis
de uns para com os outros. Na ausência disto, a reivindicação de ser uma
verdadeira igreja cristã é posta em dúvida (1 Co 3.3s).
SANTA
O povo
de Deus forma a nação santa (1 Pe 2.9). No sentido mais profundo a igreja é
santa, da mesma forma que todo indivíduo cristão é santo em virtude de estar
unido a Cristo, separado para ele e revestido com sua justiça perfeita. Na sua
posição diante de Deus em Cristo, a igreja é irrepreensível e isenta de
qualquer mancha moral. A distinção entre a igreja visível e a invisível
aplica-se aqui, desde que esta santidade imputada não pertence aos membros da
igreja não confiam pessoalmente em Cristo como Salvador.
A união
com Cristo envolve também uma santidade de vida que seja visível. Desse modo, a
relação da igreja com Cristo, o seu cabeça, será expressa no caráter moral e
nas características especiais de sua vida e de seus relacionamentos
comunitários. A igreja alheia à santidade é alheia a Cristo. Quando Cristo
dirigiu-se à sua igreja, ele esperava dela essa mesma diferença moral e foi
severo em seu julgamento quando observou que ela lhes faltava (Ap 2.-3).
A fim
de não desanimarmos ao aplicar este teste, vale a pena lembrar que grande parte
da vida da igreja do Novo Testamento foi eivada de erros, divisões, falhas
morais e instabilidade. Não obstante, a presença de um sinal visível de
santidade é uma característica invariável da igreja de Deus.
CATÓLICA
O termo
católico significa literalmente abrangendo ao todo. E em seu uso primitivo,
significava ser a igreja universal, distinguindo-a da local; mais tarde, veio
significar a igreja que professava a fé ortodoxa, em contraste com os hereges.
Com o passar do tempo, Roma adotou o termo para referir-se a si mesma como
instituição eclesiástica, centrada no papado, historicamente desenvolvida e
geograficamente difundida. Os reformadores do século dezesseis procuraram
restaurar o significado anterior da catolicidade, em termos do reconhecimento
da fé ortodoxa; nesse sentido, argumentavam eles, a igreja católica era de fato
eles e não Roma.
O
principal aspecto da catolicidade da igreja primitiva estava na sua abertura
para todos. Distinta do judaísmo, com seu exclusivismo racial, e do
gnosticismo, com seu exclusivismo cultural e intelectual, a igreja abriu seus
braços a todos que quisessem ouvir a mensagem e aceitar seu salvador, sem levar
em conta cor, raça, posição social, capacidade intelectual e antecedentes
morais. Ela surgiu no mundo como uma fé para todos (Mt 28.19; Ap 7.9). A única
exigência para admissão era a fé pessoal em Jesus Cristo como Salvador e
Senhor, com o batismo como o rito autorizado de entrada, porque manifestava o
evangelho da graça (Mt 28.19; At 2.38,41).
É neste
nível fundamental que esta característica (a de ser católica) deve ser
entendida. As igrejas que exigem outros testes devem ser consideradas como
suspeitas. Não existe lugar numa verdadeira igreja para a discriminação de
qualquer tipo, seja racial, de cor, social, intelectual ou moral, neste último
caso desde que haja evidência de verdadeira arrependimento. A discriminação
denominacional também precisa ser examinada com cuidado nos casos em que as
doutrinas fundamentais bíblicas sejam claramente reconhecidas.
APOSTÓLICA
O
apóstolo é uma testemunha do ministério e da ressurreição de Jesus; é um arauto
autorizado do evangelho (Lc 6.12s; At 1.21s; 1 Co 15.8-10). Os arautos tomam
posição entre Jesus e todas as gerações subseqüentes da fé cristã; nós só nos
achegamos a ele por meio dos apóstolos e de seu testemunho sobre ele,
incorporado no Novo Testamento. Neste sentido fundamental, toda a igreja é
"edificada sobre o fundamento dos apóstolos" (Ef 2.20; cf. Mt 16.18;
Ap 21.14). A apostolicidade da igreja encontra-se, portanto, no fato de ela
conformar-se à fé apostólica "que uma vez por todas foi entregue ao
santos" (Jd 3; cf. At 2.42). Os apóstolos ainda governam e organizam a
igreja na medida em que esta permite que sua vida, seu entendimento e sua
pregação sejam constantemente reformados pelos ensinos das Sagradas Escrituras.
Desde
que o apóstolo significa literalmente enviado, não é de surpreender que o Novo
Testamento refira-se ocasionalmente a outros apóstolos (Rm 16.7). Neste sentido
geral, todos os que são hoje enviados pelo Senhor como evangelistas, pregadores,
iniciadores de igrejas, etc. são no grego do Novo Testamento, apostoloi,
enviados. Isto não subentende de forma alguma que eles tenham uma posição de
autoridade especial, competindo com a do grupo original cujo governo continua
através das escrituras apostólicas. Reivindicar o cargo apostólico em nossos
dias é compreender erradamente o ensino bíblico e oferece na prática um desafio
grave com respeito à autoridade e finalidade da revelação divina do Novo
Testamento.
É
igualmente errado entender a apostolicidade como uma continuidade histórica do
ministério, retrocedendo até Cristo e seus apóstolos através de uma sucessão de
bispos. Esta interpretação não tem nenhum apoio bíblico. Toda noção da graça de
Deus comunicada mediante uma sucessão histórica de dignatários da igreja
contraria o caráter da própria graça, conforme os escritos bíblicos. Além
disso, como garantia da verdade da mensagem apostólica, a sucessão episcopal
evidentemente falhou. Foi uma igreja perfeitamente enquadrada nesta sucessão histórica
que precisou da Reforma do século dezesseis, para não mencionar outras reformas
menores, como o despertamento do século dezoito com Whitefield e os Wesleys.
O
catolicismo romano estende esta interpretação de "apostólico" para
incluir a reivindicação de que o Bispo de Roma é o sucessor histórico de Pedro
e o guardião especial da graça de Deus na igreja. A alegação é insustentável. A
primazia de Pedro entre os apóstolos não passou de uma clara liderança no
período da primeira missão cristã. Ele claramente recuou para um segundo plano
à medida que a igreja avançou fora de Jerusalém, sendo Paulo nomeado para
liderar a missão fora da Palestina e quando João lutava para corrigir as
igrejas prejudicadas pelos falsos mestres. É bem significante que Pedro não apareceu
no papel principal no Concílio de Jerusalém (At 15), e que ficou claramente à
sombra de Paulo no incidente registrado em Gálatas 2.
Roma
alega ainda que esta suposta supremacia de Pedro deveria continuar para a
salvação eterna e bem contínuo da igreja. Nenhum dos versículos citados como
apoio escriturístico (Mt 16.18s; Jo 21.15-17 e Lc 22.32) faz qualquer
referência a um sucessor de Pedro. Essas duas reivindicações romanas contrariam
a evidência manifesta no Novo Testamento, e a terceira, de que a primazia de
Pedro se estende ao bispo de Roma, é ainda menos digna de crédito. O fato de
Pedro ter terminado sua vida como mártir em Roma é uma tradição primitiva que
encontra apoio razoável; as dificuldades histórica, porém, para mostrar que
houve uma sucessão estabelecida de bispos monárquicos de Roma, a partir do
primeiro século, são intransponíveis.
A
sucessão apostólica é na verdade a sucessão do evangelho apostólico, quando o
depósito original de verdade apostólica é passado de uma para outra geração: "homens
fiéis ... para instruir a outros" (2 Tm 2.2). A igreja é apostólica à
medida que reconhece na prática a autoridade suprema das escrituras
apostólicas.
Texto retirado do livro CONHEÇA A VERDADE
ESTUDANDO AS DOUTRINAS DA BÍBLIA, de
Bruce Milne.
Prefácio de J. I. Packer.
Reproduzido com autorização
Digitação: Dawson Campos de
Lima
Este
artigo é parte integrante do portal http://www.textosdareforma.net. Exerça
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